A extensa grade do Colégio Nossa
Senhora do Loreto com seus florões de ferro, pintados de um vermelho
ferruginoso, quase cor de vinho, se levanta imponente, agora, em minha memória.
O portão, a velha campainha e a Irmã que sempre abria a porta e olhava para meu
pai, um pouco assustada. Sua capa de gabardine, seu chapéu italiano, sua
juventude e seu ar inteligente e a pequena filha, ao seu lado, em prantos,
sempre a impressionavam, quiçá. Ela não falava, não tenho lembrança da sua voz,
de nenhuma outra atitude. Apenas me conduzia de volta ao meu lugar no mundo. As
outras crianças saiam todos os finais de semana, mas, eu costumava ficar só no
internato por meses seguidos. Era sempre assim o meu retorno: um desconsolo. O apreço pela liberdade da infância, com sua alegria de brincar na rua, de ir à piscina,
de entrar em contato com o mar, de conviver com outras crianças em uma cidade
de interior, ora se divertindo nos quintais, ora se deleitando em longas caminhadas até as Termas,
tudo isso fazia do Colégio, para mim, uma espécie de prisão. Um pequeno
presídio para onde eu retornava, entristecida e angustiada... Mas, esse era tão
somente o momento inicial do retorno, prontamente esquecido, à medida que
caminhava pelos extensos corredores do Colégio em direção ao dormitório onde
guardaria os meus pertences, que trouxera de casa.
O gosto pelo estudo suplantava
tudo isso: rapidamente, essa impressão da volta logo desaparecia para dar lugar
à alegria de aprender e de conviver com as outras crianças, minhas amigas. Decidira
ser escritora e o exercício da leitura e da escrita tomavam minha atenção de
forma muito intensa. Adquiri nesta época, o hábito de contemplar a natureza, os
ambientes, as pessoas, os acontecimentos, para gravar na memória, detalhes, impressões,
e poder relatar tudo, mais tarde, quando quisesse.... Acreditava que, de minha
capacidade de observação, dependeria, em grande parte, a qualidade da minha
escrita...
Dentre tantos fatos ocorridos,
nesses dois anos de vida como aluna do Colégio interno em São Paulo, do
conjunto de todas as lembranças muito nítidas que tenho, recorto uma fotografia
de retrato que está em minha mente, arquivada com delicadeza... Uma Irmã
ajoelhada em prece, em um genuflexório, próximo ao altar, durante uma
celebração de Primeira Comunhão.... Meu olhar repousa ainda sobre ela, e é nela
que reconheço a presença do bem mais precioso que recebi em minha vida... A
chama da Fé!
Irmã Maria José não me viu,
olhando para ela, estava concentrada no que se passava no altar, com amor e
devoção sinceros, integralmente voltada para o Cristo, em quem ela confiava...
Era um conforto espiritual imenso contemplar a sua expressão de paz, a sua firmeza
interior... A determinação com que agia sempre, ficou em minha memória... Ela
foi a nossa catequista, responsável pela preparação das alunas para a Primeira
Comunhão. Organizou tudo com foco na simplicidade que deveria nos aproximar de
Jesus Eucarístico mais do que de um evento social em que as crianças exibissem
ricas vestes e lindos complementos. Todas nós trajamos vestidos brancos longos,
com saias rodadas enfeitadas com pequenas nervuras, sem rendas ou ornamentos
vistosos.
Durante a celebração, li um
texto muito bonito e singelo, que ela escolheu, uma prece de agradecimento e de
compromisso para com Jesus. Havia muitas outras crianças filhas de pessoas
importantes, de famílias abastadas e famosas da Capital paulista e de outras
cidades do Brasil, mas, a Irmã Maria José me chamou para participar dessa forma
tão significativa para mim que amava, também, a Literatura. Em minha mente, a
Hóstia era apenas um pouco de farinha de trigo misturada à água, preparada de
uma forma especial, mas, havia em meu
coração a certeza de que Jesus estava presente, não pelo ritual todo, por nada
que fosse de ordem humana, em si, apenas, mas pelo amor que ele tinha por nós!
Está agora, também, diante de meu olhar
interior, meu pequeno missal com sua capa de madrepérola e o terço miúdo que
aprendi a orar com frequência... Todos os dias ia para a gruta que havia no
pátio da escola, atrás do parquinho com brinquedos, para ajoelhar-me diante da
imagem de Nossa Senhora de Lourdes. Não raro, uma colega vinha acompanhar-me na
reza do terço de pérolas pequeninas: era imensa a minha certeza de que Nossa
Senhora haveria de nos atender e de nos conceder a graça de retornarmos aos nossos
lares desfeitos.... A maioria das alunas ali, era filha de pais desquitados, esse
era um dos poucos Colégios de Freiras no Brasil que aceitava esse tipo de criança.
Reporto esse hábito da oração ao
legado que Irmã Maria José me deixou, nunca retornei para o lar dos meus sonhos,
mas, guardei a fé, o terço, a confiança em Deus e fui caminhando pelo mundo e
descobrindo que a minha família é a humanidade e o meu lar o lugar onde semeio
o amor que prometi a Jesus no dia de minha Primeira Comunhão. Decidir o que
fazer com a nossa liberdade é a tarefa primordial da vida, aprender a escolher
é nosso mister... Como distinguir a Vontade de Deus em cada momento da existência
e fazer exatamente o que devemos?
A noção de liberdade era clara, tão clara para mim, nesse tempo! Por vezes, ficava olhando as pessoas na rua,
caminhando, cada qual com seu destino.... Encantava-me pensar que um dia
poderia, o tempo todo, ir e vir, livremente, decidindo para onde iria, o que
faria com a minha existência adulta...
Hoje, lembrando-me de Irmã Maria
José, com seus óculos tão sérios, de lentes um pouco espessas demais para o seu
rosto tão jovem e delicado, sem a forma feminina usual à época - os famosos
óculos de gatinho - penso em tudo o que eu observava.... As suas vestes escuras,
o seu cabelo que nunca víamos, a tez muito branca e a pele suave ... Ela seria uma bonita moça, se trajasse uma
roupa comum.... Por quê havia feito essa escolha de negar a sua identidade como
uma mulher normal? - eu me indagava... Depois serenava o meu espírito,
compreendendo que fora uma escolha sua, que a dedicação à causa de Jesus a
fazia tão feliz, à sua maneira, quanto as outras mulheres que se casavam e
tinham filhos...
São cinquenta e sete anos de
distância no tempo e no espaço, mas, o sentimento em mim, ainda está vivo,
intensamente vivo... Não se manifestou por meio de abraços ou ternos afagos,
não ficou marcado por palavra, externando emoções, nem ao menos um sorriso aparece
nesse quadro da minha memória, existe apenas o espelho de uma alma que reflete a luz puríssima do Cristo, em seu amor sincero e devotado... Essa
paz de Jesus me acompanhou por toda a minha vida, a doce certeza de sua
presença, de seu amparo em todos os momentos muito dolorosos, pelos quais
passei inúmeras vezes e em todos os outros, felizes também, com suas oportunidades de aprendizagem... Irmã Maria José me concedeu essa
alegria sublime de conhecer Jesus, de acreditar em sua Palavra, de admirar e
reverenciar o seu exemplo e de aspirar seguir os seus passos todos os dias,
apesar de tudo o que ainda sou e de tudo o que ainda não consigo ser...
Na verdade, ela permanece de
joelhos em minha mente, como uma referência para mim mesma, é assim que cultivo
a sua memória: no âmbito da gratidão profunda e da esperança que nunca finda!
... E importa-me, sobretudo, no contexto desta memória, o que faço, o meu sacrifício, em nome desse
amor que Jesus nos legou como exemplo...
Rita De Blasiis
Uberaba, 24 de fevereiro de 2018.
Imensa alegria de rever essa querida instituição escolar de minha infância, tal como ficou em meu coração!... Aqui está o link, para quem quiser examinar as imagens:
Imensa alegria de rever essa querida instituição escolar de minha infância, tal como ficou em meu coração!... Aqui está o link, para quem quiser examinar as imagens: