quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O galho seco e o ramo verde

Diferentemente dos olhos expostos no banner, os meus se abriram para fitar o espaço por onde eu caminhava e as pessoas que me cercavam. Segurava um vaso com um ramo verde, intensamente vivo, a emergir da terra com toda a força de sua natureza. Havia um canto que passou pela minha alma com sua beleza e seu alento, mas, por ser novo para mim, não permaneceu na minha memória. Suspendi o ramo verde acima do meu rosto para que vissem que havia um ser humano ali, cuja identidade não deveria ser oculta, naquele momento. Mais que isso, ocorreu-me que o compromisso de portar o ramo verde diante de todos, presentes e ausentes, partícipes protagonistas e não-partícipes, quiçá, antagonistas, me fazia também corresponsável por aquele discurso em prol da vida, da justiça e da paz. Um ramo verde tem o direito de viver, é justo que ele sobreviva e o mundo precisa estar em paz, em equilíbrio para que isso aconteça – assim meditava e me questionava, naquele momento...
Ao meu lado, caminhava um senhor, segurando nas mãos um galho seco, sombrio e morto. As pontas perfiladas do galho seco eram agudas e tristes como punhais. Havia um grito recolhido nelas que se erguia em direção ao céu. Era possível escutar a dissonância dessa canção silenciosa onde, no entanto, somente uma pausa ressoava, interrompida para todo o sempre. O galho seco foi exibido diante de todos os presentes. Estivesse nas mãos de quem o matou por gosto, talvez se convertesse em um troféu, em um signo de vitória... Eloquente primazia da força bruta que derruba matas ciliares para fazer nascer o canavial, florestas milenares para fazer nascer o pasto, sacrários ambientais para fazer florescer o agronegócio... Fitei o galho seco e a sua dor emudecida, desenhada no espaço branco da Igreja... São João Batista advertiu com firmeza, há tanto tempo atrás! Mas, ali estava o signo do galho seco, deposto nos degraus e ali permaneceu, representando o impossível de si mesmo em que se aprisionam os impiedosos que se satisfazem com a desgraça alheia...
A recomendação para o ramo verde era de que deveria deixá-lo ao pé do altar, exatamente no meio. Assim fiz, coloquei-o com uma prece, pedindo a Deus que os que partiriam em sua pequena batalha pela vida, pela justiça e pela paz, fossem bem-sucedidos e retornassem em paz para testemunhar a sua Justiça. Feito isso, voltei para o banco detrás, ao fundo, de onde poderia assistir à celebração. Uma mulher conduziu esse momento com entusiasmo; ela falava dos trabalhadores presentes e dos que se foram, todos e todas engajados na tarefa de manter a comunidade cristã digna desse título. Os cristãos se amam, entre tais, portanto, não pode haver seres abandonados, humanos esquecidos, injustiçados por qualquer razão. Sua fala era entusiasmada, serena e vinha de um longe muito distante, como um lastro de navio que atravessou muitos mares a porfia... Era de se ver que essa nau tinha norte e sabia para onde ia... Ouvi atentamente suas memórias que eram memórias comuns, de todos e todas ali, que ela assim pontuava... Os nomes dos que já se encontravam além eram citados e o canto veio, ao final, seguro de que estavam todos abençoados pela glória de Deus...
Pensei na glória de Deus como a certeza do dever cumprido, a alegria de ter amado como ele solicitou os irmãos a caminho... Haveria outra? Desconheço. Os justos na Justiça de Deus, em paz, na vida eterna... Prosseguia a celebração: dentre os antigos nomes lembrados, havia uma presença nobre, cingida pelo galardão do próprio trabalho. Uma irmã dominicana de nome Anita. Irmã Anita, foi o que compreendi. A narrativa dos seus feitos e de outras, de então, era comovente, singela e forte. Se resumia numa frase, nas palavras de Dom Benedito: “Foram as irmãs dominicanas que levaram a Igreja Católica para a periferia de Uberaba”.
Abriu-se em minha mente, a lembrança do Bairro Lavapés, em Araxá... Irmã Luciana e as meninas do São Domingos, atuando entre os moradores do bairro, tão distante, naquele tempo... A preciosa semente da compreensão do mundo e da nossa responsabilidade cristã estava sendo depositada em nosso espírito, estava sendo vivida entre os problemas do próprio mundo e experimentada no quadro real da vida... As estudantes do Ginásio cantavam “para mim, a chuva no telhado, é cantiga de ninar, mas o pobre, meu irmão...” e entendiam Jesus dos pobres, dos pecadores, dos aflitos e dos enfermos...
Irmã Anita foi convidada a ungir os representantes da cidade de Uberaba e de Uberlândia que partiam para Londrina. Com extrema habilidade levantou-se, valendo-se de um aparelho de apoio para o seu caminhar e foi cumprir esse novo dever com alegria. Honrados e felizes, os viajantes sorriam e acolhiam a unção com esperança redobrada. Iam tratar de problemas graves da atualidade nos centros urbanos, iam discutir os passos, a forma de enfrentamento das demandas das comunidades, iam fortalecer a trajetória feita e alicerçar o novo caminho... Onde o óleo da unção é posto não é possível exaurir-se a água viva da fé, não penetra a inquietação da dúvida? O coração e a marcha de cada um haverá de responder a si próprio, assim o queira Deus, assim se fez a nossa prece...
Havia ido até a Igreja para assistir uma Missa do Envio que me pareceu importante quando nos foi feito o convite. Imaginara uma capela cheia de gente ansiosa por atuar nas frentes de trabalho de Jesus. Li os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, suas Cartas tão cheias de recomendações neste sentido. Mas, não havia compreendido bem, entretanto. Era uma celebração, sim, mas não da Santa Missa. E apenas os irmãos em Cristo das CEBs, que os viajantes ali representavam, estavam presentes. Não contei, mas, eram não mais do que 50 pessoas. Tocadas de tal entusiasmo e de tão grande boa vontade que se podia enxergar nelas aqueles com quem compartilhariam o que buscariam, tudo o que fariam na viagem e realizariam após o seu retorno às suas messes. Havia uma multidão dentro da Igreja, portanto.
Para essa multidão simbólica e para todos os presentes foi feita a reflexão de Dom Paulo Mendes Peixoto, no início da celebração. Revendo o que me ficou de suas palavras, enxerguei dois pilares: o da coragem e o da esperança. A propósito, me ocorreu agora, que, se coragem significa agir com o coração, o fruto imediato da coragem haverá de ser a esperança viva!... Se cremos, agimos, e se cremos vivamente e agimos com amor, não nos faltará esperança de que a realidade em curso verdadeiramente se transforme. Para mim, essa foi a benção da exortação do Arcebispo de Uberaba, Dom Paulo, que integrava o grupo que seguia para Londrina para participar do 14º INTERECLESIAL DAS CEBs.
Não sou das CEBs, nunca vivi essa experiência de estudo e trabalho comunitário, mas, sempre me pareceu isso mesmo. Cristianismo primitivo com todos os deveres cristãos na pauta da comunidade para serem cumpridos por todos e todas, com consciência e com amor. “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12) - inscrito nos corações e objetivado na prática cotidiana. Sempre admirei as CEBs e sou muito grata ao esforço desses cidadãos brasileiros que tão forte e decisivamente atuaram na nossa História.
No silencio da minha alma, contemplava o momento, enternecida. O Brasil de volta aos tempos funestos da Ditadura Militar, em outra configuração; o esfacelamento do Estado Democrático de Direito de forma acintosa e, não raro, tão debochada; o povo de olhos fechados, anestesiado pela mídia e aquele pequeno grupo de sete pessoas posto em marcha para lutar pelo que todos os brasileiros precisam assumir: vida digna para todos e todas, justiça e paz em nosso país. Não, não se trata de combatentes contra a corrupção ou o que quer que seja, contra o governo atual ou o anterior. Não é questão de ideologia, de fundamentação teórica, de política partidária. A referência é simples: onde há sofrimento precisamos manifestar a nossa compaixão. Com urgência e com eficiência, é preciso fazer algo para minimizar ou sanar o sofrimento alheio quando nos deparamos com ele. Era isso o que Jesus fazia e foi o que nos recomendou. O que distingue o trabalhador em nome de Jesus, e permite que seja reconhecido como cristão, não é o seu sentimento de piedade e a manifestação da sua misericórdia?
A celebração terminou com a evocação de nossa Mãe Maria Santíssima, pedindo a ela: “nessa travessia, cubra-nos teu manto cor de anil” ... Do Céu vieram as bênçãos que não foram vistas, mas, cintilaram na alegria com que todos e todas compartilharam o abraço da paz de Cristo.
À porta da cozinha, no salão externo, era como quê se Nossa Senhora sorrisse para os convidados: havia um caldo quente e bom, feito com extremo carinho, os olhos da cozinheira assim anunciavam, acalentados pelo amor da nossa Mãezinha do Céu. A prosa foi boa e o ânimo para o enfrentamento da luta, grande. Voltei para minha casa serena e convicta de que os egoístas renitentes que se satisfazem com a dor alheia, não têm para onde ir e não podem ocultar, de si mesmos, a própria vergonha. De tal modo se equivocam, que orarmos por eles é uma urgência, um grave dever a cumprir. Convém, todavia, nos examinarmos bem e verificarmos com atenção: no fundo, todos nós precisamos de orações! Unidos na fé, no entanto, com coragem, amando como Jesus amou, perdoando o mal que nos foi, ainda é ou será feito, nossa esperança se perpetuará como um ramo verde eternamente vivo no altar do Pai. Para viver com justiça e em paz, só o amor de Deus basta! Apesar de tudo o que, todos e todas nós ainda somos, que Ele nos conceda essa graça, pelo nosso sincero e perseverante esforço: a possibilidade de convivência fraterna e pacífica em nossas comunidades, em nosso país e em nosso planeta.

Rita De Blasiis

Uberaba, 23 de janeiro de 2017. 

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Receita de paz para um Ano Novo

Arte visual: Rita De Blasiis
Um súbito desejo de recolher o vento lá fora
me assaltou a alma...
No dia primeiro deste ano que me espreita
o som do vento não me acalma,
suscita o velho encantamento dessas coisas
leves que não podemos reter:
elas nos visitam e vão para onde
não se sabe quando...
Ontem, o céu chorou o dia inteiro, 
houve um tal silencio tão profundo
que me fez ouvir os mortos...
Todos os mortos da minha vida
que passaram pela minha alma
deixando o vazio do desamor inquieto.
As últimas gotas da chuva do 
trigésimo primeiro dia do mês de dezembro
de 2017 caíram dos meus olhos agora. 

(o tudo que se foi é nada e aquilo que 
não fizemos continua o nada que não foi , 
e o que resta é o intenso desejo de que 
nos venha habitar a semente do amanhã capaz de dar frutos perenes e flores ternas 
que preencham o imponderável com o seu aroma para todo o sempre)

O vento recolhido nas palavras 
- circunspecto poema - parte, 
levando a esperança toda desse dia:
o dia que amanheceu, apesar de nós.
Os pássaros até agora cantam,
compreendo os seus trinados timidamente,
eles dizem em sua algazarra feliz:
- Ave, Maria! Ó Pai Nosso que estais nos céus...
2018 já tem serventia, vamos!...
Haverá perdão para todas as ofensas
porque haveremos de nos perdoar... Amém.

Rita De Blasiis

Uberaba, 01 de janeiro, 2018.

Publicado no Jornal Correio de Araxá. 

sábado, 13 de janeiro de 2018

Machu Picchu, em busca da paz...

Não sei se você gosta, mas, foi o que encontrei para ouvir[1]... Tenho a Martha Argerich na memória de minha juventude, que passei ouvindo música erudita, uma lembrança bela e feliz que compartilho com a sua juventude agora.
Isso nos faz, de certa forma, ocuparmos um espaço atemporal do universo e é nele que preciso falar com você sobre o meu olhar para um não sei como definir e sobre um porquê que me desafia e questiona. Estamos todos nós perdidos num jogo aleatório sem princípio nem fim, sem consciência plena do passado e sem perspectiva de futuro plausível e amável? Se estamos, o que esperamos; a esperança que nos visita é de que espécie?
Podemos viver sem norte, sem sentido, sem rumo? Conseguimos sobreviver, apesar de tudo? Alguma coisa dentro de nós responde sim, sobrevivemos, mas, não sem norte... Sempre sabemos ou buscamos saber para onde vamos, o que significa nossa caminhada e como iremos até onde queremos... O sentimento de pertencimento a um local, a uma nação é um arremedo do sentimento de pertencimento ao Universo, creio... As mínimas coisas do nosso contexto gritam sua presença e nos vemos nelas: não estamos separados de nada, nem de ninguém... A legitimidade dos nossos esforços não é sancionada pelos resultados apenas. Há um censor interior que nos dá conta de que o caminho é esse mesmo e o que acontece é o que deveria ser: não tem sorte, não tem azar. Existe uma lei sempiterna, regendo o aparente caos. A ciência contemporânea está se aproximando muito rapidamente disso: há um estabelecimento de normas no universo que se nos afigura cada vez mais imprevisível, no sentido da autonomia inteligente que manifesta, e nos faz pensar se estamos sujeitos às suas normas, ou se as podemos burlar... Oh, por vezes nos assemelhamos às crianças com seus brinquedos: testamos a vida para ver como isso tudo funciona...
Outras vezes, nos quedamos em silencio, tentando observar, desvendar ou decifrar os mecanismos que geram, acionam, sustentam, viabilizam o funcionamento do universo como uma engrenagem gigantesca e complexa...
Nosso olhar, no entanto, não transpõe a barreira concreta das peças, dos encaixes, dos movimentos, dos sentidos, dos efeitos... Algo que se expande, algo que se multiplica, algo que se transforma, a vida nos escapa, não nos entrega seu segredo mais ambicionado: sua origem e seu destino...
Esse olhar que contempla o que de maravilhoso é capaz a mão humana não se inclina sobre o que de maravilhoso é capaz a mão divina, mas, por quê não? O sopro do tempo leva tudo de roldão, desaparecem civilizações, culturas, patrimônios, identidades... O que permanece e por qual motivo permanece?
A água fria da fonte está no mesmo local; o ar tem, ainda, as mesmas características; a vegetação continua viva; as nuvens visitam a paisagem em íntima comunhão; há milênios, o Sol nasce e se esconde no horizonte; o silêncio paira sobre as pedras; os degraus se enchem de umidade; as edificações se erguem para o céu...
Nesse recorte do tempo e do espaço, nosso olhar repousa e perscruta: tudo ficou assim silencioso e inerte, à espera de quê? O som dos nossos passos irrompe no tempo presente, mas, de onde vem ele, realmente? É apenas um caminhar que se encanta ou é um caminhar cheio do encantamento que prossegue?
Quando nos distanciamos do ventre de nossa mãe, ousamos viver e crescemos e amadurecemos, mas, a ciência de que estivemos mergulhados em seu corpo, preparando nosso próprio corpo é inegável. Tudo está tão próximo e tão perceptível que não negamos essa origem... No entanto, a nossa consciência eterna que encerra o gérmen da vida infinita, a questionamos!...
Não houve quem pudesse habitar o local e continuar bebendo a água fria da fonte; não houve mais quem aspirasse cotidianamente o ar puro e rarefeito da montanha; ninguém plantou nos terraços, os alimentos e as flores;  a presença das nuvens não foi louvada e amada; o nascer do Sol não foi saudado e sua energia não foi haurida; nenhum canto ou instrumento musical dialogou com a paz do silêncio sobre as pedras; como lágrimas, a água da chuva, nos degraus, não banhou os pés de mais nenhum habitante; a palha não cobriu as moradas e os templos, como vestes sobre os corpos... para onde se foram todos e todas? Quem poderia narrar o que se passou?
As sombras que habitam a dimensão imorredoura do lugar, todavia, circulam felizes e serenas. Prosseguem em seu afã, em suas aprendizagens, e acompanham visitantes, quiçá... Reconhecem alguns...
No local, só é permitido o diálogo musical da paz com o silencio sobre as pedras nuas. É possível, apenas, passar pelo lugar e ver o que restou do esplendor de outrora. Permanecer exigiria pureza, espírito rarefeito, compreensão do que significa o Sol, capacidade de semear para compartilhar, presença plena que recebe e se doa no ciclo natural da coexistência serena...
A conquista do controle sobre si mesmo, era esse o objetivo? A capacidade de amar, era essa a meta? A sabedoria nas escolhas, era essa a razão de ser das experiências?
                Se a vida rompe a barreira do mundo físico e se recolhe ao seu ponto de origem, a justiça dos fatos e dos feitos se afirma e perpetua. Caso contrário, a justiça humana tomará qual feição? Nos aproximamos do corpo harmônico do cosmos, fitando essas edificações que se erguem para o céu como árvores que brotam e se agigantam, respirando mansamente. Tudo o que não flui nessa corrente etérea de amor compõe a dor de viver fora do ventre de nossa Mãe universal, animados pelo desejo de ser individualidades capazes de sobreviver sem ela, à custa de outrem.
Se não reconhecemos a origem dos seres, respeitaremos seu destino que não identificamos? As escolhas alheias, o que significarão para nós? As questões se sucedem... As nuvens sobre Machu-Pichu são como alfaias que velam o sagrado... Nosso olhar descansa, nosso espírito se aquieta. Nos visita o sentimento de compaixão pelos que sofrem a solidão que desconhece a fraternidade, que não se apiedam nem se lamentam diante da dor humana, a dor de todo e qualquer ser vivo, tão somente vivem em um mercado, onde trabalham por si mesmos, comercializam coisas e vidas, desconectados também de sua própria origem e ignorantes do próprio destino. Se submetem e se vendem, subjugam e compram... Constroem prisões e locais de adestramento para fazer valer suas vontades, suas leis, seus projetos, suas metas...
Quando enfim, retornamos e volvemos nosso olhar sobre nossa existência, tristeza, vergonha, desconforto se mesclam em nosso íntimo. Viver nesse tempo contemporâneo tem como leitmotiv a ária da Paixão Segundo São Mateus de Bach: “Compadecei-vos de mim, Senhor, meus olhos choram amargamente[2]”... Negamos o amor como Pedro, negamos nossa presença solidária no mundo dos que sofrem, negamos nossa crença e nossos compromissos para com nossas convicções, negamos, enfim, nossa identidade.
Nesse vazio insuportável, o que nos resta? Viver alijados de nós mesmos, como párias no mundo? Fazer justiça com as próprias mãos? Mover consciências à força bruta? Perpetrar crimes que nos parecem justificáveis?
A longa e penosa ascensão que vai do egoísmo ao altruísmo, é mesmo uma lenta subida ao cume de onde se pode avistar a jornada, avaliar cada passo e contemplar a dimensão real e mínima de tudo o que ficou para trás reduzido à sua relativa importância... Se é o amor que move o Universo e se é o amor que nos move, essa é a referência máxima: a origem, o sentido, a razão e o fim de nossas existências. Como identificamos o amor? Pelo sacrifício que ele enseja. Quem ama, se sacrifica. O amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba”. (1 Coríntios, 13:7-8).
A ária nesse momento é a Lacrimosa do Réquiem de Mozart[3], ela tem ainda a conotação dolorosa do arrependimento de tudo que fizemos, tentando acertar, convencidos ou não de que era a melhor opção... Mas, já carrega em si um prenúncio de conciliação e descortina a esperança esplêndida que a misericórdia divina nos concede... Ela é como a certeza da manhã que vem após a noite... “A noite escura da alma” ... (São João da Cruz).
Carol Ros, amiga querida, em Machu Picchu (Janeiro de 2017)
Carol Ros, amiga querida, em Machu Picchu(Janeiro de 2017)





Na minha adolescência, o desejo de ir a Machu Picchu foi intenso, um sonho acalentado e perdido ao longo da vida... Mas, nunca totalmente abandonado, essa viagem era uma investigação, um questionamento, um anseio, um profundo desejo de contatar o divino fora dos cânones ocidentais... Foi uma experiência meditada ao longo da vida, de alguma forma meu espírito esteve voltado para essa investigação, viajando por caminhos similares à rota de Machu Picchu, com o mesmo intuito... Frequentemente lia algo, via fotografias, refletia sobre o local e os dados que encontrava... Em Uberaba, à cabeceira de minha cama, coloquei a imagem da cidade sagrada dos Incas. Gosto de contemplar as nuvens sobre o cume da montanha, para não esquecer o que realmente quero da vida.
Ao lado da foto de Machu Picchu, entre nuvens também, estão os olhos de Jesus. Eles me dizem: “Eu vos dou a minha paz”. A paz de quem só almeja amar, não sofre pelos desejos insaciáveis e supérfluos, não impõe sofrimento a ninguém e está permanentemente disposto a se sacrificar, se necessário for, por quem precisa de amparo.
Quando a jovem índia exclamou perante os torturados de Hernán Cortés: - Você não pode fazer isso, eles também são cristãos! – estava certa. Cristãos são todos os que buscam a paz e se dedicam à aprendizagem do amor no trajeto da própria existência. Mesmo que não tenham consciência disso, da própria cristianidade, são seguidores do Cristo, em espírito e verdade.
Mas, Jesus nos dá a sua paz? Assim, simplesmente pela palavra que pronuncia? O que acontece, afinal, quando essa palavra nos visita? Revestida de beleza e serenidade, despida da angústia da incerteza e da agrura da revolta, a paz de Jesus nos desperta o desejo de paz, de nos tornarmos semente de paz no lugar em que estivermos, entre os que convivem conosco. Tão distantes estamos dessa realidade, mas, quão grande é o nosso desejo de paz!... Se assim não fora, o que nos levaria a enfrentar a longa viagem até Machu Picchu? O que nos faria suportar com denodo, a longa viagem da vida?
Oxalá o nosso encontro com Jesus, como o de Santa Teresa de Ávila com São João da Cruz, nos conceda essa constatação:

Nada te turbe,
Nada te espante,
Tudo passa,
Deus perrmanece.
A paciência
Tudo alcança;
Quem a Deus tem,
Nada lhe falta:
Só Deus basta. 

Rita De Blasiis
Uberaba, 12 de fevereiro de 2018.

P.S.: Quando encontrei a canção baseada na oração de Santa Teresa de Ávila, encontrei também a paz de Jesus brilhando nos olhos de Santa Terezinha de Lisieux...
Disponível em: .[5]








[1]Concerto em Sol Maior para Piano e Orquestra, Adagio Assai – Maurice Ravel. Intérprete: Martha Argerich.
Disponível em: < https://open.spotify.com/track/5vbOTmeK5k5L9WnPTESt2N>.
[2] Erbarme dich, mein Gott- Paixão Segundo São Mateus, BWV 244 , Johann Sebastian Bach. Intérprete: Kathleen Ferrier. Disponível em: .
[3] Lacrimosa – Réquiem de Mozart. Intéprete: Choir of King’s College, Cambridge. Disponível em: .
[4] Nada te turbe. Oração de Santa Teresa de Ávila.
Disponível em:.
[5] Nada mais que hoje. Poema de Santa Teresinha do Menino Jesus. Intérprete: Celina Borges.