sábado, 13 de janeiro de 2018

Machu Picchu, em busca da paz...

Não sei se você gosta, mas, foi o que encontrei para ouvir[1]... Tenho a Martha Argerich na memória de minha juventude, que passei ouvindo música erudita, uma lembrança bela e feliz que compartilho com a sua juventude agora.
Isso nos faz, de certa forma, ocuparmos um espaço atemporal do universo e é nele que preciso falar com você sobre o meu olhar para um não sei como definir e sobre um porquê que me desafia e questiona. Estamos todos nós perdidos num jogo aleatório sem princípio nem fim, sem consciência plena do passado e sem perspectiva de futuro plausível e amável? Se estamos, o que esperamos; a esperança que nos visita é de que espécie?
Podemos viver sem norte, sem sentido, sem rumo? Conseguimos sobreviver, apesar de tudo? Alguma coisa dentro de nós responde sim, sobrevivemos, mas, não sem norte... Sempre sabemos ou buscamos saber para onde vamos, o que significa nossa caminhada e como iremos até onde queremos... O sentimento de pertencimento a um local, a uma nação é um arremedo do sentimento de pertencimento ao Universo, creio... As mínimas coisas do nosso contexto gritam sua presença e nos vemos nelas: não estamos separados de nada, nem de ninguém... A legitimidade dos nossos esforços não é sancionada pelos resultados apenas. Há um censor interior que nos dá conta de que o caminho é esse mesmo e o que acontece é o que deveria ser: não tem sorte, não tem azar. Existe uma lei sempiterna, regendo o aparente caos. A ciência contemporânea está se aproximando muito rapidamente disso: há um estabelecimento de normas no universo que se nos afigura cada vez mais imprevisível, no sentido da autonomia inteligente que manifesta, e nos faz pensar se estamos sujeitos às suas normas, ou se as podemos burlar... Oh, por vezes nos assemelhamos às crianças com seus brinquedos: testamos a vida para ver como isso tudo funciona...
Outras vezes, nos quedamos em silencio, tentando observar, desvendar ou decifrar os mecanismos que geram, acionam, sustentam, viabilizam o funcionamento do universo como uma engrenagem gigantesca e complexa...
Nosso olhar, no entanto, não transpõe a barreira concreta das peças, dos encaixes, dos movimentos, dos sentidos, dos efeitos... Algo que se expande, algo que se multiplica, algo que se transforma, a vida nos escapa, não nos entrega seu segredo mais ambicionado: sua origem e seu destino...
Esse olhar que contempla o que de maravilhoso é capaz a mão humana não se inclina sobre o que de maravilhoso é capaz a mão divina, mas, por quê não? O sopro do tempo leva tudo de roldão, desaparecem civilizações, culturas, patrimônios, identidades... O que permanece e por qual motivo permanece?
A água fria da fonte está no mesmo local; o ar tem, ainda, as mesmas características; a vegetação continua viva; as nuvens visitam a paisagem em íntima comunhão; há milênios, o Sol nasce e se esconde no horizonte; o silêncio paira sobre as pedras; os degraus se enchem de umidade; as edificações se erguem para o céu...
Nesse recorte do tempo e do espaço, nosso olhar repousa e perscruta: tudo ficou assim silencioso e inerte, à espera de quê? O som dos nossos passos irrompe no tempo presente, mas, de onde vem ele, realmente? É apenas um caminhar que se encanta ou é um caminhar cheio do encantamento que prossegue?
Quando nos distanciamos do ventre de nossa mãe, ousamos viver e crescemos e amadurecemos, mas, a ciência de que estivemos mergulhados em seu corpo, preparando nosso próprio corpo é inegável. Tudo está tão próximo e tão perceptível que não negamos essa origem... No entanto, a nossa consciência eterna que encerra o gérmen da vida infinita, a questionamos!...
Não houve quem pudesse habitar o local e continuar bebendo a água fria da fonte; não houve mais quem aspirasse cotidianamente o ar puro e rarefeito da montanha; ninguém plantou nos terraços, os alimentos e as flores;  a presença das nuvens não foi louvada e amada; o nascer do Sol não foi saudado e sua energia não foi haurida; nenhum canto ou instrumento musical dialogou com a paz do silêncio sobre as pedras; como lágrimas, a água da chuva, nos degraus, não banhou os pés de mais nenhum habitante; a palha não cobriu as moradas e os templos, como vestes sobre os corpos... para onde se foram todos e todas? Quem poderia narrar o que se passou?
As sombras que habitam a dimensão imorredoura do lugar, todavia, circulam felizes e serenas. Prosseguem em seu afã, em suas aprendizagens, e acompanham visitantes, quiçá... Reconhecem alguns...
No local, só é permitido o diálogo musical da paz com o silencio sobre as pedras nuas. É possível, apenas, passar pelo lugar e ver o que restou do esplendor de outrora. Permanecer exigiria pureza, espírito rarefeito, compreensão do que significa o Sol, capacidade de semear para compartilhar, presença plena que recebe e se doa no ciclo natural da coexistência serena...
A conquista do controle sobre si mesmo, era esse o objetivo? A capacidade de amar, era essa a meta? A sabedoria nas escolhas, era essa a razão de ser das experiências?
                Se a vida rompe a barreira do mundo físico e se recolhe ao seu ponto de origem, a justiça dos fatos e dos feitos se afirma e perpetua. Caso contrário, a justiça humana tomará qual feição? Nos aproximamos do corpo harmônico do cosmos, fitando essas edificações que se erguem para o céu como árvores que brotam e se agigantam, respirando mansamente. Tudo o que não flui nessa corrente etérea de amor compõe a dor de viver fora do ventre de nossa Mãe universal, animados pelo desejo de ser individualidades capazes de sobreviver sem ela, à custa de outrem.
Se não reconhecemos a origem dos seres, respeitaremos seu destino que não identificamos? As escolhas alheias, o que significarão para nós? As questões se sucedem... As nuvens sobre Machu-Pichu são como alfaias que velam o sagrado... Nosso olhar descansa, nosso espírito se aquieta. Nos visita o sentimento de compaixão pelos que sofrem a solidão que desconhece a fraternidade, que não se apiedam nem se lamentam diante da dor humana, a dor de todo e qualquer ser vivo, tão somente vivem em um mercado, onde trabalham por si mesmos, comercializam coisas e vidas, desconectados também de sua própria origem e ignorantes do próprio destino. Se submetem e se vendem, subjugam e compram... Constroem prisões e locais de adestramento para fazer valer suas vontades, suas leis, seus projetos, suas metas...
Quando enfim, retornamos e volvemos nosso olhar sobre nossa existência, tristeza, vergonha, desconforto se mesclam em nosso íntimo. Viver nesse tempo contemporâneo tem como leitmotiv a ária da Paixão Segundo São Mateus de Bach: “Compadecei-vos de mim, Senhor, meus olhos choram amargamente[2]”... Negamos o amor como Pedro, negamos nossa presença solidária no mundo dos que sofrem, negamos nossa crença e nossos compromissos para com nossas convicções, negamos, enfim, nossa identidade.
Nesse vazio insuportável, o que nos resta? Viver alijados de nós mesmos, como párias no mundo? Fazer justiça com as próprias mãos? Mover consciências à força bruta? Perpetrar crimes que nos parecem justificáveis?
A longa e penosa ascensão que vai do egoísmo ao altruísmo, é mesmo uma lenta subida ao cume de onde se pode avistar a jornada, avaliar cada passo e contemplar a dimensão real e mínima de tudo o que ficou para trás reduzido à sua relativa importância... Se é o amor que move o Universo e se é o amor que nos move, essa é a referência máxima: a origem, o sentido, a razão e o fim de nossas existências. Como identificamos o amor? Pelo sacrifício que ele enseja. Quem ama, se sacrifica. O amor “tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba”. (1 Coríntios, 13:7-8).
A ária nesse momento é a Lacrimosa do Réquiem de Mozart[3], ela tem ainda a conotação dolorosa do arrependimento de tudo que fizemos, tentando acertar, convencidos ou não de que era a melhor opção... Mas, já carrega em si um prenúncio de conciliação e descortina a esperança esplêndida que a misericórdia divina nos concede... Ela é como a certeza da manhã que vem após a noite... “A noite escura da alma” ... (São João da Cruz).
Carol Ros, amiga querida, em Machu Picchu (Janeiro de 2017)
Carol Ros, amiga querida, em Machu Picchu(Janeiro de 2017)





Na minha adolescência, o desejo de ir a Machu Picchu foi intenso, um sonho acalentado e perdido ao longo da vida... Mas, nunca totalmente abandonado, essa viagem era uma investigação, um questionamento, um anseio, um profundo desejo de contatar o divino fora dos cânones ocidentais... Foi uma experiência meditada ao longo da vida, de alguma forma meu espírito esteve voltado para essa investigação, viajando por caminhos similares à rota de Machu Picchu, com o mesmo intuito... Frequentemente lia algo, via fotografias, refletia sobre o local e os dados que encontrava... Em Uberaba, à cabeceira de minha cama, coloquei a imagem da cidade sagrada dos Incas. Gosto de contemplar as nuvens sobre o cume da montanha, para não esquecer o que realmente quero da vida.
Ao lado da foto de Machu Picchu, entre nuvens também, estão os olhos de Jesus. Eles me dizem: “Eu vos dou a minha paz”. A paz de quem só almeja amar, não sofre pelos desejos insaciáveis e supérfluos, não impõe sofrimento a ninguém e está permanentemente disposto a se sacrificar, se necessário for, por quem precisa de amparo.
Quando a jovem índia exclamou perante os torturados de Hernán Cortés: - Você não pode fazer isso, eles também são cristãos! – estava certa. Cristãos são todos os que buscam a paz e se dedicam à aprendizagem do amor no trajeto da própria existência. Mesmo que não tenham consciência disso, da própria cristianidade, são seguidores do Cristo, em espírito e verdade.
Mas, Jesus nos dá a sua paz? Assim, simplesmente pela palavra que pronuncia? O que acontece, afinal, quando essa palavra nos visita? Revestida de beleza e serenidade, despida da angústia da incerteza e da agrura da revolta, a paz de Jesus nos desperta o desejo de paz, de nos tornarmos semente de paz no lugar em que estivermos, entre os que convivem conosco. Tão distantes estamos dessa realidade, mas, quão grande é o nosso desejo de paz!... Se assim não fora, o que nos levaria a enfrentar a longa viagem até Machu Picchu? O que nos faria suportar com denodo, a longa viagem da vida?
Oxalá o nosso encontro com Jesus, como o de Santa Teresa de Ávila com São João da Cruz, nos conceda essa constatação:

Nada te turbe,
Nada te espante,
Tudo passa,
Deus perrmanece.
A paciência
Tudo alcança;
Quem a Deus tem,
Nada lhe falta:
Só Deus basta. 

Rita De Blasiis
Uberaba, 12 de fevereiro de 2018.

P.S.: Quando encontrei a canção baseada na oração de Santa Teresa de Ávila, encontrei também a paz de Jesus brilhando nos olhos de Santa Terezinha de Lisieux...
Disponível em: .[5]








[1]Concerto em Sol Maior para Piano e Orquestra, Adagio Assai – Maurice Ravel. Intérprete: Martha Argerich.
Disponível em: < https://open.spotify.com/track/5vbOTmeK5k5L9WnPTESt2N>.
[2] Erbarme dich, mein Gott- Paixão Segundo São Mateus, BWV 244 , Johann Sebastian Bach. Intérprete: Kathleen Ferrier. Disponível em: .
[3] Lacrimosa – Réquiem de Mozart. Intéprete: Choir of King’s College, Cambridge. Disponível em: .
[4] Nada te turbe. Oração de Santa Teresa de Ávila.
Disponível em:.
[5] Nada mais que hoje. Poema de Santa Teresinha do Menino Jesus. Intérprete: Celina Borges.


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