Diferentemente dos olhos expostos
no banner, os meus se abriram para fitar o espaço por onde eu caminhava e as
pessoas que me cercavam. Segurava um vaso com um ramo verde, intensamente vivo, a emergir
da terra com toda a força de sua natureza. Havia um canto que passou pela minha
alma com sua beleza e seu alento, mas, por ser novo para mim, não permaneceu na
minha memória. Suspendi o ramo verde acima do meu rosto para que vissem que
havia um ser humano ali, cuja identidade não deveria ser oculta, naquele
momento. Mais que isso, ocorreu-me que o compromisso de portar o ramo verde
diante de todos, presentes e ausentes, partícipes protagonistas e
não-partícipes, quiçá, antagonistas, me fazia também corresponsável por aquele
discurso em prol da vida, da justiça e da paz. Um ramo verde tem o direito de
viver, é justo que ele sobreviva e o mundo precisa estar em paz, em equilíbrio
para que isso aconteça – assim meditava e me questionava, naquele momento...
Ao meu lado, caminhava um senhor,
segurando nas mãos um galho seco, sombrio e morto. As pontas perfiladas do
galho seco eram agudas e tristes como punhais. Havia um grito recolhido nelas
que se erguia em direção ao céu. Era possível escutar a dissonância dessa
canção silenciosa onde, no entanto, somente uma pausa ressoava, interrompida
para todo o sempre. O galho seco foi exibido diante de todos os presentes.
Estivesse nas mãos de quem o matou por gosto, talvez se convertesse em um
troféu, em um signo de vitória... Eloquente primazia da força bruta que derruba
matas ciliares para fazer nascer o canavial, florestas milenares para fazer
nascer o pasto, sacrários ambientais para fazer florescer o agronegócio...
Fitei o galho seco e a sua dor emudecida, desenhada no espaço branco da
Igreja... São João Batista advertiu com firmeza, há tanto tempo atrás! Mas, ali
estava o signo do galho seco, deposto nos degraus e ali permaneceu, representando
o impossível de si mesmo em que se aprisionam os impiedosos que se satisfazem
com a desgraça alheia...
A recomendação para o ramo verde
era de que deveria deixá-lo ao pé do altar, exatamente no meio. Assim fiz,
coloquei-o com uma prece, pedindo a Deus que os que partiriam em sua pequena
batalha pela vida, pela justiça e pela paz, fossem bem-sucedidos e retornassem
em paz para testemunhar a sua Justiça. Feito isso, voltei para o banco detrás,
ao fundo, de onde poderia assistir à celebração. Uma mulher conduziu esse
momento com entusiasmo; ela falava dos trabalhadores presentes e dos que se
foram, todos e todas engajados na tarefa de manter a comunidade cristã digna
desse título. Os cristãos se amam, entre tais, portanto, não pode haver seres
abandonados, humanos esquecidos, injustiçados por qualquer razão. Sua fala era
entusiasmada, serena e vinha de um longe muito distante, como um lastro de
navio que atravessou muitos mares a porfia... Era de se ver que essa nau tinha
norte e sabia para onde ia... Ouvi atentamente suas memórias que eram memórias
comuns, de todos e todas ali, que ela assim pontuava... Os nomes dos que já se
encontravam além eram citados e o canto veio, ao final, seguro de que estavam
todos abençoados pela glória de Deus...
Pensei na glória de Deus como a
certeza do dever cumprido, a alegria de ter amado como ele solicitou os irmãos
a caminho... Haveria outra? Desconheço. Os justos na Justiça de Deus, em paz, na
vida eterna... Prosseguia a celebração: dentre os antigos nomes lembrados,
havia uma presença nobre, cingida pelo galardão do próprio trabalho. Uma irmã
dominicana de nome Anita. Irmã Anita, foi o que compreendi. A narrativa dos seus
feitos e de outras, de então, era comovente, singela e forte. Se resumia numa
frase, nas palavras de Dom Benedito: “Foram
as irmãs dominicanas que levaram a Igreja Católica para a periferia de Uberaba”.
Abriu-se em minha mente, a
lembrança do Bairro Lavapés, em Araxá... Irmã Luciana e as meninas do São
Domingos, atuando entre os moradores do bairro, tão distante, naquele tempo...
A preciosa semente da compreensão do mundo e da nossa responsabilidade cristã
estava sendo depositada em nosso espírito, estava sendo vivida entre os
problemas do próprio mundo e experimentada no quadro real da vida... As
estudantes do Ginásio cantavam “para mim, a chuva no telhado, é cantiga de ninar,
mas o pobre, meu irmão...” e entendiam Jesus dos pobres, dos pecadores, dos
aflitos e dos enfermos...
Irmã Anita foi convidada a ungir
os representantes da cidade de Uberaba e de Uberlândia que partiam para
Londrina. Com extrema habilidade levantou-se, valendo-se de um aparelho de
apoio para o seu caminhar e foi cumprir esse novo dever com alegria. Honrados e
felizes, os viajantes sorriam e acolhiam a unção com esperança redobrada. Iam
tratar de problemas graves da atualidade nos centros urbanos, iam discutir os
passos, a forma de enfrentamento das demandas das comunidades, iam fortalecer a
trajetória feita e alicerçar o novo caminho... Onde o óleo da unção é posto não
é possível exaurir-se a água viva da fé, não penetra a inquietação da dúvida? O
coração e a marcha de cada um haverá de responder a si próprio, assim o queira
Deus, assim se fez a nossa prece...
Havia ido até a Igreja para
assistir uma Missa do Envio que me pareceu importante quando nos foi feito o convite.
Imaginara uma capela cheia de gente ansiosa por atuar nas frentes de trabalho
de Jesus. Li os Evangelhos, os Atos dos Apóstolos, suas Cartas tão cheias de
recomendações neste sentido. Mas, não havia compreendido bem, entretanto. Era
uma celebração, sim, mas não da Santa Missa. E apenas os irmãos em Cristo das
CEBs, que os viajantes ali representavam, estavam presentes. Não contei, mas,
eram não mais do que 50 pessoas. Tocadas de tal entusiasmo e de tão grande boa
vontade que se podia enxergar nelas aqueles com quem compartilhariam o que
buscariam, tudo o que fariam na viagem e realizariam após o seu retorno às suas
messes. Havia uma multidão dentro da Igreja, portanto.
Para essa multidão simbólica e
para todos os presentes foi feita a reflexão de Dom Paulo Mendes Peixoto, no
início da celebração. Revendo o que me ficou de suas palavras, enxerguei dois
pilares: o da coragem e o da esperança. A propósito, me ocorreu agora, que, se
coragem significa agir com o coração, o fruto imediato da coragem haverá de ser
a esperança viva!... Se cremos, agimos, e se cremos vivamente e agimos com
amor, não nos faltará esperança de que a realidade em curso verdadeiramente se
transforme. Para mim, essa foi a benção da exortação do Arcebispo de Uberaba,
Dom Paulo, que integrava o grupo que seguia para Londrina para participar do
14º INTERECLESIAL DAS CEBs.
Não sou das CEBs, nunca vivi
essa experiência de estudo e trabalho comunitário, mas, sempre me pareceu isso
mesmo. Cristianismo primitivo com todos os deveres cristãos na pauta da
comunidade para serem cumpridos por todos e todas, com consciência e com amor.
“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12) - inscrito nos corações e
objetivado na prática cotidiana. Sempre admirei as CEBs e sou muito grata ao
esforço desses cidadãos brasileiros que tão forte e decisivamente atuaram na
nossa História.
No silencio da minha alma,
contemplava o momento, enternecida. O Brasil de volta aos tempos funestos da
Ditadura Militar, em outra configuração; o esfacelamento do Estado Democrático
de Direito de forma acintosa e, não raro, tão debochada; o povo de olhos
fechados, anestesiado pela mídia e aquele pequeno grupo de sete pessoas posto
em marcha para lutar pelo que todos os brasileiros precisam assumir: vida digna
para todos e todas, justiça e paz em nosso país. Não, não se trata de
combatentes contra a corrupção ou o que quer que seja, contra o governo atual
ou o anterior. Não é questão de ideologia, de fundamentação teórica, de
política partidária. A referência é simples: onde há sofrimento precisamos
manifestar a nossa compaixão. Com urgência e com eficiência, é preciso fazer
algo para minimizar ou sanar o sofrimento alheio quando nos deparamos com ele.
Era isso o que Jesus fazia e foi o que nos recomendou. O que distingue o
trabalhador em nome de Jesus, e permite que seja reconhecido como cristão, não
é o seu sentimento de piedade e a manifestação da sua misericórdia?
A celebração terminou com a
evocação de nossa Mãe Maria Santíssima, pedindo a ela: “nessa travessia, cubra-nos
teu manto cor de anil” ... Do Céu vieram as bênçãos que não foram vistas, mas,
cintilaram na alegria com que todos e todas compartilharam o abraço da paz de
Cristo.
À porta da cozinha, no salão
externo, era como quê se Nossa Senhora sorrisse para os convidados: havia um
caldo quente e bom, feito com extremo carinho, os olhos da cozinheira assim
anunciavam, acalentados pelo amor da nossa Mãezinha do Céu. A prosa foi boa e o
ânimo para o enfrentamento da luta, grande. Voltei para minha casa serena e
convicta de que os egoístas renitentes que se satisfazem com a dor alheia, não
têm para onde ir e não podem ocultar, de si mesmos, a própria vergonha. De tal
modo se equivocam, que orarmos por eles é uma urgência, um grave dever a
cumprir. Convém, todavia, nos examinarmos bem e verificarmos com atenção: no
fundo, todos nós precisamos de orações! Unidos na fé, no entanto, com coragem,
amando como Jesus amou, perdoando o mal que nos foi, ainda é ou será feito, nossa
esperança se perpetuará como um ramo verde eternamente vivo no altar do Pai. Para
viver com justiça e em paz, só o amor de Deus basta! Apesar de tudo o que,
todos e todas nós ainda somos, que Ele nos conceda essa graça, pelo nosso
sincero e perseverante esforço: a possibilidade de convivência fraterna e
pacífica em nossas comunidades, em nosso país e em nosso planeta.
Rita De Blasiis
Uberaba, 23 de janeiro de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário